Racismo no Brasil é realidade.

Racismo no Brasil | Ainda hoje, muitas pessoas não compreendem o significado do feriado da consciência negra e das políticas de ação afirmativa como a política de cotas raciais para vestibulares das universidades públicas, para concursos públicos, ou para os editais de fomento às políticas e projetos culturais específicos para cultura negra. Muitas pessoas ainda não compreendem o significado do conceito ‘Consciência Negra’, achando o termo racista (“isso é racismo às avessas”; “isso cria ódio entre brancos e negros, é injusto”) e defendendo políticas universalistas que compreendam toda a população e não apenas a população negra brasileira (“o problema é do pobre, não é racial”; “todos somos iguais”). Este é um singelo texto de contraposição a estes posicionamentos do senso comum que visa contribuir para o entendimento das desigualdades sociais no Brasil.
Estamos nos aproximando do mês da consciência negra. O 20 de Novembro é uma importante conquista da sociedade brasileira contra o racismo. É uma data que faz alusão a morte de um grande herói nacional, Zumbi, uma das lideranças da grande sociedade Quilombo dos Palmares, ícone da resistência contra a escravização africana.
Os quilombos eram comunidades organizadas por pessoas escravizadas de origem africana que lutaram contra a violência dos sistemas coloniais, das fazendas onde eram exploradas.
Os quilombos surgiram em todas as regiões onde existiam formas de exploração do trabalho de africanos, traduzindo formas de resistência e luta organizada e politizada contra o regime escravocrata. Estas sociedades africanas receberam diferentes nomes de acordo com as regiões onde foram estruturadas: quilombos ou mocambos, nas áreas de exploração portuguesa (Brasil); maroons, nas áreas de exploração inglesa (Estados Unidos); palenques, nas áreas de exploração espanhola (Cuba ou Colômbia), entre outras.
O maior quilombo, e também o mais famoso, foi o Quilombo dos Palmares, uma nação composta pela articulação de 11 sociedades e dezenas de milhares de pessoas, entre africanos de diversas nações, afrodescendentes, povos originais da Brasil de diversas nações, e até brancos marginalizados pelo próprio regime colonial que descendiam. O poder colonial por diversas vezes tentou destruir o Quilombo dos Palmares, e há registros de pelo menos 16 expedições com este propósito, sendo que em 15 delas não houve êxito devido a organização e estratégias militar avançadas destas nações de Palmares e das suas lideranças. Embora ainda sob algumas dúvidas históricas, entende-se que o criminoso bandeirante Domingos Jorge Velho, um homem conhecido por diversos crimes contra a humanidade como sequestrar e matar indígenas, liderou uma expedição que acabou com a morte de Zumbi dos Palmares. Para executar este crime, a mando do poder colonial, ele teve total apoio financeiro e perdão pelos crimes passados e pelos futuros. Seu primeiro ataque em 1692 fracassou, mas dois anos depois ele voltou com um contingente enorme de homens e de munições. O quilombo resistiu por 22 dias, mas foi derrotado em 6 de fevereiro de 1694 (1). Zumbi escapou, mas foi delatado por um dos seus companheiros que não resistiu às torturas. Na Serra Dois Irmãos ele foi encontrado e morto no dia 20 de novembro de 1695, aos 40 anos de idade (2).

Como o Quilombo dos Palmares, muitos quilombos, maroons ou palenques, fizeram luta contra o poder colonial da época. Sempre houveram lutas organizadas pelas nações africanas e comunidades afro-brasileiras contra as violências perpetradas pelo sistema colonial. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão no ocidente, pelo menos retoricamente, em 13 de maio de 1888, com a promulgação da lei Áurea. Isso não significou o fim das desigualdades, mas pelo contrário, a reorganização das injustiças e dos crimes contra a humanidade para a continuação das desigualdades sociais e a manutenção da estrutura colonial racista sob a estética da industrialização e do surgimento das cidades.
Após a falsa abolição, não houve qualquer política pública reparatória dos séculos de genocídio e exploração contra os africanos, afrodescendentes e indígenas. Pelo contrário, foram abandonados a seus próprios empreendimentos sem quaisquer subsídios governamentais. O que houve no Brasil pós-abolição foi um processo de apartheid social, onde a população negra brasileira não foi contemplada pelo projeto de nação que, à época, fora estabelecido como prioridade. Enquanto isso, nesta mesma época, no início do sec. XX, o governo brasileiro colocou em prática uma série de políticas de privilégios para a vinda de imigrantes europeus, com custeio de transporte e alojamento, facilitação para inserção no mercado de trabalho, treinamentos e outras necessidades, considerando o projeto de sociedade do governo. Essas necropolíticas visavam sobretudo a invisibilização e subsequente desaparecimento da população negra, pois a este projeto de sociedade a população negra não estava contemplada, e, portanto, deveria sumir. Pretendeu-se construir uma Europa no Brasil.
Embora as práticas sociais nos períodos do Brasil Colônia (1530 – 1815), Reino Unido (1815 – 1822), Império (1822 – 1889), e posteriormente na República Velha (1889 – 1930), foram sumariamente racistas e genocidas contra a população negra brasileira, em todas estas épocas sempre houveram lutas permanentes e intensa organização política, econômica, cultural, e acadêmica dos povos africanos e indígenas. Após a república velha, outras formas de exploração vieram à tona contra estas populações, e novas formas de resistência e militância social foram construídas para fazer frente a estas violências e injustiças.
Quando pensamos a data 20 de Novembro e todo o desdobramento que ela produz com programações culturais, acadêmicas e educacionais específicas à cultura e história negra e africana no Brasil, buscamos refletir sobre todos estes percursos, que inclusive ainda acontecem. Ainda hoje presenciamos profundas desigualdades sociais norteadas pelo racismo, demonstradas facilmente pelas diferenças significantes em vários indicadores sociais dos estudos de agências de pesquisa como o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), e outras que constroem mapas sociodemográficos da população.

Acesse o link: As Cores da Desigualdade

No Brasil a tradição das desigualdades sociais sempre recaiu contra africanos e seus descendentes, e contra os indígenas. O racismo e os preconceitos correlatos sempre foram suas fontes reguladoras estruturantes da sociedade. Não obstante o Brasil não estaria entre os 10 países com maiores desigualdades sociais de acordo com o cálculo do coeficiente Gini (indicador que mede a concentração de renda de um país e indica desigualdade quanto mais próximo de 100 for o índice), entre 128 países que tiveram esta variável calculada (3). E, acompanhando a história de desigualdades tradicionalmente perpetradas contra a população negra e indígena, sempre houveram movimentos sociais de resistência e luta. Por isso, o dia 20 de Novembro e todas as políticas de ação afirmativa são ações importantíssimas para a reparação dos séculos de distorções, violências e desigualdades articuladas pelo Estado Brasileiro. Ainda, as políticas de reparações que temos hoje são tidas como simbólicas porque são muito inexpressivas perto da destruição que o acúmulo secular de crimes contra a humanidade causou às populações negra e indígena. Porém, são importantes porque promovem algum equilíbrio no acesso à educação e na inserção ao mercado de trabalho. Tratam-se dos movimentos iniciais a caminho de um singelo equilíbrio de oportunidades entre os grupos sociais no Brasil.
Existe a tendência no Brasil de tomar o racismo como trivial, entendendo-o como uma questão puramente das relações interpessoais, ou de brincadeira, ou ainda sendo tratados como preconceitos frutos da ignorância que todos nós estamos imersos. De acordo com Carlos Moore (4), o racismo retira das pessoas a sensibilidade para perceber o sofrimento alheio, e desta maneira promove a sua trivialização e banalização. A insensibilização sempre foi, e continua sendo, um importante mecanismo para fortalecer o racismo no Brasil e as mídias contribuem muito para este processo quando retratam pessoas negras sempre em posições subalternizadas e estereotipadas, em notícias veiculadas, nas novelas, nos programas de auditório, nos filmes e demais produtos midiáticos.
Vimos observando vários crimes de racismo que ganharam grande visibilidade devido a repercussão causada na população. Casos de racismo no esporte, no contexto educacional nas escolas e universidades, em empresas e no funcionalismo público nos hospitais, postos de saúde, em bancos, supermercados, e em muitos outros estabelecimentos. O racismo segundo alguns pesquisadores envolve o uso de símbolos, práticas e relações, sem a necessidade de uma ideologia de superioridade biológica e sem a necessidade de justificar a sua orientação de ódio e intolerância, para obter aprovação moral. Assim, o racismo pode ser amoral, irracional e reproduzido culturalmente, sem necessariamente denotar consciência de quem o reproduz. É importante observarmos que o racismo constitui o imaginário coletivo. O racismo, se complexificou desde a época do Brasil Colônia, e atualmente se vale dos símbolos, dos mecanismos de insensibilização e da distorção da alteridade para produzir generalizações desqualificantes e promover o ódio e a intolerância racial (5). Para a existência do racismo, não é necessário que sua conceituação exista, ou que seja consciente aos sujeitos que o praticam. Ser racista, porém, implica em possuir concepções raciais e, nesta ceara, a cor da pele não é necessariamente o problema para o racista, mas sim todo o conjunto de crenças que o sujeito possui a respeito da etnia/cor da pele.
Passados 322 anos da morte do herói Zumbi dos Palmares, o 20 de Novembro se traduz como um importante mote para a construção de acúmulo e tomada de consciência sobre as desigualdades raciais e o racismo contemporâneo. Sua importância, entre outras tantas, reside na construção de determinações coletivas, agência social, autonomia de pensamento e práticas orientadas à promoção de igualdade racial, na educação para as relações étnico-raciais conforme prevê a lei 10.639/03, na construção e execução de políticas de proteção dos direitos humanos, e no respeito ás diversidades humanas.
Referências:
1. Portal Geledés.
http://arquivo.geledes.org.br/areas-de-atuacao/educacao/planos-de-aula/11850-especial-dia-da-consciencia-negra-112011
2. Portal EBC.
http://www.ebc.com.br/infantil/voce-sabia/2013/07/conhece-a-historia-de-zumbi-dos-palmares
3. BBC Brasil. http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2005/09/050907_idhrw.shtml
4. Moore, Carlos. Racismo & Sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racismo (livro). 2ª edição – Belo Horizonte: Nandyala, 2012.
5. Blum, Lawrence. O Que As Explicações de “Racismo” Causam?. In: Levine, Michael P.; Pataki, Tamas (organizadores). Racismo em Mente (livro); tradução de Racism in Mind (por Fábio Assunção Lombarde Rezende) – São Paulo: Madras, 2005.
José Evaristo Silvério Netto
*Publicado originalmente em falantecultural.com.br
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